Relógio
Preâmbulo às Instruções para dar corda no relógio
Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você - eles não sabem, o terrível é que eles não sabem - dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrinas das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.
Instruções para dar corda ao relógio
Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, com dois dedos na roda da corda, suavemente faça-a rodar. Um outro tempo começa, perdem das árvores as folhas, os barcos voam, como um leque enche-se o tempo de si mesmo, dele brotam o ar, a brisa da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão. Quer mais alguma coisa? Aperte-o ao pulso, deixe-o correr em liberdade, imite-o sôfrego. O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi esquecido vai corroer as velas do relógio, gangrenando o frio sangue dos seus pequenos rubis. E lá bem no fundo está a morte, se não corrermos e chegarmos antes para compreender que já não interessa nada.
Julio Cortázar
7 Comments:
O que dizer sobre os celulares, agora?
Intrigante texto. Nunca havia lido nada, até agora, de Cortázar. É um escritor que me interessa - tenho uma quedinha pelo fantástico surreal... Texto para ser lido relido. Agora sobre a foto, é a de Morangos Silvestres, não? Se sim, e creio que sim, porque se não for sim, então assim é um plágio. Mas só não havia visto ainda aqueles olhos ali logo abaixo, que deixam a imagem mais onírica do que já é.
É sim Sergim...
É interessante essa maneira surreal e trágica de ver um relógio e sua atuação ou influência em nossas vidas.
Sem ele atrelado ao nosso pulso a vida torna-se difícil e talvez trágica...
Difícil? Trágica?... Isso é com ele... com celular.... e essas coleiras eletronicas...
I say briefly: Best! Useful information. Good job guys.
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