MÁSCARAS ÓBVIAS

09 junho 2006

Trechos

"Às vezes chegava em casa tarde da noite e encontrava minha mulherzinha dormindo. Uma criança de menos de 20 anos. Lindas pernas, lindo busto, querendo apenas aprender a arte de viver mais simplesmente; não querendo atacar convenções, mas aceitando verdades absolutas que ainda não haviam começado a esquartejá-la. Eu tirava meu terno suado. Tentava lavar-me, mas faltava água. Em silêncio, para não acordá-la, deitava-me na cama. Ela precisava de amor e de carinho. Mas estaria eu em condições de dar? Também eu era uma criança tentando jogar um jogo perigoso para mim, fora de casa. E era eu quem ela pretendia ter como professor de vida. Como ousar beijá-la, se durante todo o dia eu nada mais fizera senão fracassar no jogo da vida? Como ousar ter desejo? Sentir o sexo, com tanta culpa e tanta falta de talento para o jogo da vida sobre os ombros? Medo de tocá-la. Medo de não poder amá-la e, ainda assim, amando-a com toda a intensidade. Sua fragilidade, porém, era o espelho da minha própria fragilidade. Como explicar-lhe minha falta de condições para o jogo do dinheiro, que é jogo da vida?
Naquele silêncio, feito de calor, suor e noite, eu sentia intensamente a ausência de Deus e sofria com essa ausência, pois toda a responsabilidade do que ocorreria daquele momento e diante era minha. E faltava-me força para suportar o peso de minha ignorância. Chorar, também não podia, pois ela acabaria acordando, e como explicar minhas lágrimas, se elas existiam alheias à minha vontade?
Como dizer-lhe: meu amor, a culpa é desses filhos-da-puta que tiveram a sorte de nascerem filhos-da-puta; que tiveram a sorte de nascerem acreditando que o mundo é assim mesmo. Dinheiro, meu amor, é a palavra de ordem, e para não chorar agora é necessário acreditar nele. É por falta de dinheiro que estou brocha nessa noite.
Também não podia dizer-lhe isso, pois ouviria sua verdade adolescente e justa:
- Mas, meu amor, você não pode brigar com todos. O dinheiro não faz mal algum. Papai trabalha, todos trabalham.
Como explicar-lhe que bem cedo deixei de aceitar porradas? Como explicar-lhe que bem cedo tentei estabelecer um valor ético próprio para a criança que fui anteontem, para a criança que era ontem e para a criança que sou hoje? Como explicar-lhe que não aceitei que me ensinassem o que era bom e ruim antes que eu mesmo pudesse distinguir o bom do mau? Os adultos muito cedo tentaram me enganar. Estúpidos animais fabricados numa clicheria de carne, aprenderam o que é bom sem nunca haverem sentido isso. E tentaram ensinar também a mim que, para meu azar, bem cedo descobri suas manobras.
(...)
Sim, eu também precisava de aprovação, embora não acreditasse nela. Mas o que devia fazer se fui feito de outro barro, mais frágil e sensível, apesar de minha natural indiscrição? Mas, infelizmente, tive o azar de, apesar da pressão emocional dos adultos, crescer me interrogando. Crescer perguntando a mim mesmo. Tive o azar que até hoje me acompanha de saber que o que é bom para a autoridade transcendental, seja ela pai, mãe, professor ou patrão, não é bom para mim. Não me deixaram ser um cachorro; alguma autoridade transcendental que dorme dentro de mim não me deixou ser um cachorro, queria tanto ser um. Um bom cachorro, um cachorro bem vestido, um cachorro fodedor, um cachorro gigolô; um cachorro de automóvel e com algumas viagens a Paris. Um cachorro bom para a autoridade, pois que serve à autoridade. Mas eu mordo, sou um mau cachorro e depois falta-me talento para pedir desculpas.
Deus me faltou quando lhe pedi que me transformasse num cachorro como os outros. Deus condenou-me à humanidade.".

(Trecho do livro "O acrobata pede desculpas e cai", de Fausto Wolff.)