MÁSCARAS ÓBVIAS

21 fevereiro 2006

Aos que não são ágeis e apressados

"SE UM CÃO ENCONTRA UM GATO ...

Se um cão encontra um gato – por mero acaso ou simplesmente por probabilidade, já que existem tantos cães e gatos no mesmo território que é impossível não se cruzarem, não costuma haver problemas. Se dois homens de raças diferentes, sem história comum, sem linguagem familiar, se encontram por fatalidade frente a frente, não no meio de uma multidão nem à luz do dia, porque a multidão e a luz escondem os rostos e as naturezas, mas em terreno neutro e deserto, numa planície silenciosa e que se possa ver ao longe, ouvir os passos num sítio que proíba a indiferença, voltar atrás ou a fuga, assim que ficarem frente a frente, a única coisa que existe entre eles é hostilidade. Não como sentimento, mas acção de inimigos, transformada num acto de guerra sem motivo.

Os verdadeiros inimigos são-no naturalmente e reconhecem-se como os animais se reconhecem pelo cheiro. Não existe nenhuma razão para que o gato erice o pelo e cuspa diante de um cão desconhecido, nem que um cão mostre os dentes e rosne a um gato. Para que existisse ódio entre eles seria preciso que antes existisse alguma coisa, a traição de um deles, a perfídia do outro ou um golpe baixo. Mas entre cães e gatos não existe nenhum passado comum, nem golpes baixos, nem memória, nada para além do deserto e do frio. Podemos ser irreconciliáveis sem que tenha havido confusão, pode-se matar sem razão; a hostilidade é insensata.

O primeiro ato de hostilidade, antes do desencadear das hostilidades, é a diplomacia, um negócio deste século, representa o amor, na ausência de amor e o desejo pela repulsa. É como uma floresta em chamas atravessada por um rio, a água e o fogo lambem-se, mas a água está condenada a apagar o fogo e o fogo forçado a evaporar a água. A troca d palavras só serve para ganhar tempo antes da guerra, porque ninguém gosta de guerra e toda a gente gosta de ganhar tempo.

De acordo com a inteligência, existem espécies que nunca deveriam, solitariamente, encontrar-se frente a frente. Mas o nosso território é muito pequeno, os homens são muito numerosos, as incompatibilidades muito frequentes, as horas e os locais obscuros e os desertos pouco explícitos, para que ainda fique algum espaço para a inteligência se manifestar."
Bernard Marie Koltès,
Grande dramaturgo

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Belo texto. Não conhecia o autor-dramaturgo. Li e o reli lenta e calmamente, pois hoje estou de folga. Muitos, porém, o lerão ágil e apressada-mente - bem, nostos tempos corridos-frenéticos-perfunctórios...
Já fiz reflexão semelhante em um tempo sobre alguns aspectos abordados...
Se dois seres animais se vêem pela primeira vez, sem se ter nenhuma relação anterior - poderia talvez haver uma relação genética e/ou ancestral aí, não, de mesma raiz, de mesma origem... -, imagino eu cá que o que ocorreria seria, a princípio, um olhar-percepção de espanto e/ou curiosidade, certo? Pode sim ocorrer hostilidade ou não. Se hostilidade houver, suspeito mesmo que haja então a hostilidade inata da natureza, a apreensão, a defesa legítima-pessoal da espécie frente outra espécie. Colocaria aqui a questão da cadeia alimentar da vida, da caça e do caçador... Mas, por outro lado, pode haver a aproximação, estranha, apreensiva, cuidadosa. Bem, tem muitos outros apectos do texto ótimos, gostei muito.
Thank you, Mr. Wesley.

11:36 AM  
Anonymous Anônimo said...

Legal, irmão, mas também reli e fiquei pensando na possibilidade de uma grande ironia do que ele fala, é claro, interpretado no âmbito do humano... Mas vale lembrar o que disse o grande Doni: "Só existe a cultura.."... Lembra? Ainda vamos continuar essa conversa com umas brejas....

2:51 PM  

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