MÁSCARAS ÓBVIAS

19 agosto 2006

Congestão
Foi ensinado ao menino que "tomar banho depois de comer dá congestão e a pessoa pode até morrer...". Porém, uma voz o encasquetava: "Se tomar banho depois de comer dá congestão e pode até matar alguém, então se alguém comer e depois sair na chuva também pode morrer?...". Sabia-mente indagou o menino. Começou a desconfiar do conceito que lhe havia sido passado. Dizem aí que o pensamento tem o poder de desestruturar qualquer sistema estabelecido... Às vezes acho que é isso também, mas quem é que quer pensar hoje, né, e de que que vale, não é assim?... Bem, desconfiado do conceito dito, o menino só encontrou uma solução para esclarecer sua dúvida: tomar um banho depois de comer. Pensou na possibilidade de sair na chuva, pois, se morresse - e assim ele pensou mesmo, pois era um menino bem do inteligente -, sua morte seria mais poética!... Mas era uma época escassa de chuva, e o seu anseio em esclarecer tal dúvida era tal, que ele não quis esperar por uma futura. Foi, então, ao banho.
Pode-se dizer que ele, menino, foi prudente, pois não abusou na comida, encheu a pança moderadamente. Estômago cheio, pegou sua toalha e encaminhou-se para o banheiro. Tirou a roupa, ligou o chuveiro. A água começou a cair, cair, cair como limitada chuva!... Haviam lhe ensinado também que se devia "antes de entrar na água molhar a fonte e os pulsos...". Ele não sabia p'ra quê, mas suspeitava que era também alguma precaução contra a senhora morte. Por via das dúvidas suas, molhou a fonte e os pulsos - o rompimento, pensou ele, tinha que ser aos poucos...
A água estava gostosamente morna, fato este que tornaria a morte, se ocorrida, mais agradável. Por fim, se adentrou ele debaixo do chuveiro, essa chuva restrita e artificial inventada por alguns poucos homens e usufruída por muitos muitíssimos - e é sempre assim, não?
A água a cair, estava ele atento a todo movimento. Por ter comido moderadamente, seu estômago estava levemente pesado. Procurou manter o controle com sua razão, para que sua psico-imaginação não incentivasse possibilidades excessivas, ou seja, sandices. A água morna caía gostosamente, lhe ampliando o conhecimento sobre as coisas prazerozas da vida. Num dado momento, porém, um arroto se insinuou. "Seria o início da congestão?...", cogitou ele, precavido. Instantes depois, não mais uma insinuação, mas um arroto mesmo, mesmo sendo um leve arroto. E, dando seqüência as levezas, leves mexidos no estômago. Mas, apesar disso, o menino estava calmo, precavido, sim, mas calmo. Tal como um cientista cobaia investigando um fenômeno em si mesmo...
Logo depois desse leve efeito inicial, ele não sentiu mais nada. E deu, então, continuidade ao ritual do seu banho: passou xampu, se ensaboou e se enxaguou. Só não bateu punheta - sim, o menino já batia sua punhetinha -, pois considerou ser muito abuso para uma primeira experiência.
Banho terminado, se secou. Porém, terminou seu banho não muito satisfeito, pois não ficou convencido de que o que lhe havia sido ensinado era uma balela mesmo, ou se ele havia tido apenas sorte. Ou seja, o menino era um cético. Faria outras tentativas.