Não nos esqueçamos, como homens da
vita contemplativa [vida contemplativa], que males e infortúnios alcançaram, pelas diferentes ressonâncias da contemplatividade, os homens da
vita activa [vida ativa] - em suma, que conta nos apresenta a
vita activa, ao nos vangloriarmos diante dela com nossas boas ações.
Primeiro: as chamadas naturezas
religiosas, que pelo número predominam entre os contemplativos, e, portanto, representam sua espécie mais comum, sempre agiram de forma a tornar a vida díficil para os homens práticos e mesmo estragá-la, quando possível: obscurecer o céu, apagar o Sol, suspeitar da alegria, desvalorizar as esperanças, paralisar a mão atuante - isto souberam fazer, assim como tiveram, para épocas e sentimentos miseráveis, os seus consolos, esmolas, socorros e bênçãos.
Segundo: os artistas, um tanto mais raros que os religiosos, mas ainda uma espécie freqüênte de homens da
vita contemplativa, foram geralmente, como pessoas, intoleráveis, caprichosos, invejosos, violentos, querelentos: tal efeito deve ser descontado dos efeitos animadores e exaltadores de duas obras.
Terceiro: os filósofos, gênero em que se acham reunidas forças religiosas e artísticas, mas de forma que ao seu lado se coloca um terceiro elemento, a dialética, o gosto em demonstrar, foram autores de males à maneira dos religiosos e artistas, e além disso causaram tédio em muitos homens com o seu pendor dialético; mas o seu número sempre foi pequeno.
Quarto: os pensadores e os trabalhadores científicos; eles raramente visaram produzir efeitos, limitando-se a escavar tranqüilamente suas tocas de toupeira. Assim causaram pouco aborrecimento e mal-estar, e com freqüência, inclusive como objeto de troça e riso, sem o querer, tornaram a vida mais leve para os homens da
vita activa. Enfim, a ciência tornou-se algo muito útil para todos: se,
por essa utilidade, tantos predestinados à
vita activa abrem hoje para si um caminho rumo à ciência, com o suor de seu rosto e não sem desassossegos e imprecações, a hoste dos pensadores e trabalhadores científicos não tem culpa nessa desventura; é "pena imposta a si mesmo".*
*Segundo nota do tradutor Henri Albert, é citação de um cântico do século XVII.
( Friedrich Nietzsche, aforismo "Determinação do valor da vita contemplativa.", do livro "Aurora")